Após publicar clássicos internacionais como Sherlock Holmes, O mágico de Oz e O conde de Monte Cristo, a editora Zahar traz a nova edição de O Ateneu, de Raul Pompeia, primeiro título brasileiro a integrar a coleção Clássicos Zahar. Esta edição traz as 44 ilustrações originais do autor, com apresentação de Ivan Marques e notas de Aluizio Leite.
Publicado originalmente em folhetim na Gazeta de Notícias, O Ateneu foi escrito entre janeiro e março de 1888. O livro traz a história de Sérgio, menino de onze anos pertencente a uma família bem posicionada na aristocracia do Rio de Janeiro do fim do século XIX, e seu ingresso no colégio interno Ateneu, coincidindo com o período de transição da infância à adolescência.
Trata-se de um livro de difícil classificação, visto que possui aspectos do naturalismo fundidos ao memorialismo e a impressões subjetivas. “O Ateneu é de fato inclassificável, não só porque não se filiou a nenhuma escola, mas também por ter escapado da escravidão dos gêneros, transitando livremente entre a ficção, a poesia e o ensaio”, afirma Ivan Marques na apresentação desta edição.
Fica clara a inserção do ensaio ao longo do livro nas palestras de Dr. Cláudio, professor do Ateneu que ministra conferências semanais aos alunos, as quais o crítico Lêdo Ivo chama de “ilhas ensaísticas”. Na boca desse personagem, Raul Pompeia tem a oportunidade de expor reflexões sobre temas como arte e o sistema de ensino.
Os críticos levantam o possível caráter autobiográfico da obra, sendo que Raul Pompeia mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro e, aos dez anos de idade, ingressou como interno no Colégio Abílio, dirigido pelo barão de Macaúbas, que seria inspiração para o diretor do Ateneu, Aristarco. No livro, este é apresentado em forma próxima à divina, podendo assumir desde o aspecto de um pai amoroso até atingir “a fúria tonante de Júpiter-diretor”.
O Ateneu, narrado pelo adulto que recorda os tempos de criança, não pode ser considerado um exemplo típico de memorialismo. Silviano Santiago, em seu livro Uma literatura nos trópicos, atenta para a peculiar separação entre o Sérgio-narrador e aquele que atua, o Sérgio-personagem. Essa distinção fica nítida com o estilo sofisticado e a linguagem rebuscada que o narrador escolhe, improváveis a uma criança de apenas onze anos.
Alfredo Bosi, no livro Céu, inferno, fala na existência de um “juiz-narrador” em O Ateneu, que faz uma crítica feroz do colégio e de seus membros, destoando do tímido e amedrontado Sérgio enquanto criança e aluno.
Silviano Santiago afirma que, após as primeiras páginas, “o livro deixa de ser de memórias, introspectivo, para se apresentar tecnicamente como um agressivo romance em que o narrador se esquece de si para analisar imaginariamente os sentimentos e as emoções do outro”.
Dentro dos muros da escola
“Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame”, informa o narrador logo no início do livro. Os pais de famílias mais abastadas enviam seus filhos ao internato mais por uma questão de prestígio do que de qualidade de ensino.
A experiência escolar de Sérgio antes do Ateneu resume-se a alguns meses em uma escola familiar não muito rígida: “Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava até as duas”.
O primeiro contato de Sérgio com o Ateneu é em uma festa de encerramento das atividades escolares, em que são apresentados contos, discursos e poesias declamadas em diversas línguas. A segunda visita é durante a festa da educação física, em que são exibidas demonstrações de força e acrobacias.
Dessa forma, as duas primeiras impressões são de admiração pelas exibições dos alunos, a primeira de ordem intelectual e a segunda, física. Esses primeiros contatos servem para que a criança situe o colégio próximo da perfeição. “É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão altamente interessante, no conceito das minhas impressões”, diz o personagem.
Dentro do colégio, Sérgio percebe que nem todos os dias são brilhantes no Ateneu: “Desiludi-me dos bastidores da gloriosa parada, vendo-a pelo avesso. Nem todos os dias do militarismo enfeitam-se com a animação dos assaltos e das voltas triunfais”.
No internato, vale a “lei do mais forte”. Os novatos são agredidos “fraternalmente” pelos veteranos. Num colégio a que somente meninos têm acesso, com professores homens e um diretor que se diz o exemplo paterno para seus alunos, as aparições femininas são raras e resumem-se praticamente à mulher do diretor, que encarna a figura materna, e à criada da casa, erotizada no livro.
Com a quase ausência de mulheres, os meninos são divididos entre fracos e fortes. “Nada de protetor” é o conselho que o mais velho da turma dá a Sérgio. Ter um protetor equivale a ocupar a posição de “mais frágil”, submisso a alguém superior.
O diretor fica dividido entre expulsar ou não os maus alunos. É necessário manter intactas as bases morais da instituição, grande propaganda do Ateneu. Por outro lado, expulsões significam menos alunos pagando mensalidades, o que poderia levar à falência. Assim, alguns delitos acabam sendo tolerados. Outros, como as manifestações homossexuais, são punidos com a exposição pública dos envolvidos. “A imoralidade entrou nesta casa”, brada Aristarco em um desses casos, em que um romance entre dois alunos é descoberto. O casal é humilhado diante de todos os outros estudantes.
O livro das notas é “a mais terrível das instituições do Ateneu”. Lido em público, traz elogios a alguns alunos, mas também as últimas ocorrências e anotações sobre os alunos cujo desempenho está em decadência. As reclamações (e as penas subsequentes) variam, entre outros fatores, de acordo com a situação social da família do aluno.
A primeira punição é o julgamento dos demais, que Bosi chama de “fenomenologia do olhar”. O medo dos olhares dos outros aparece nas primeiras cenas de convivência escolar, em que Sérgio é convidado a ir à frente da sala e enfrenta um momento de pânico.
Narrativa de destruições
O livro faz um recorte da vida de Sérgio, relatando o ingresso no internato, acompanhado do fim da infância. Ao apresentar-se para a matrícula, o diretor pede que o menino corte seus cabelos, compridos e em cachos. As mechas são símbolo da infância sendo retirada. A mulher do diretor aconselha que o menino ofereça-as à mãe: “É a infância que ali fica, nos cabelos louros”.
A frase de abertura do livro, dita pelo pai ao filho diante do colégio, também alude ao rompimento com a infância: “Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”. O que se segue é o choque de trocar o ambiente familiar por um internato. “Não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro sono”, reclama Sérgio.
As recordações infantis dialogam com a história do Brasil. O livro foi escrito em 1888, próximo do fim do período imperial. Alguns traços da campanha republicana podem ser observados no livro. Na festa da educação física, o filho do diretor recusa-se a beijar a mão da princesa Isabel, presente à cerimônia. A manifestação republicana do filho causa a vergonha e a reprovação de Aristarco.
O colégio, assim como o período imperial, caminha para o fim. No momento da matrícula de Sérgio, este nota uma “pontinha de aborrecimento” no semblante do diretor e supõe se tratar de uma decepção relacionada às finanças: “O número dos estudantes novos não compensando o número dos perdidos, as novas entradas não contrabalançando as despesas do fim do ano”.
Ao longo das páginas, vai sendo exposta a decadência da instituição, representativa de uma sociedade que seria repensada e reorganizada com a República. A glória do colégio, bem como a do período imperial, é mostrada em seu último suspiro. Aristarco, que tem um busto fundido em sua homenagem, vê sua soberania se esvaindo, assim como os últimos representantes do Império no Brasil.