Até o penúltimo livro de Chico Buarque, Leite derramado, ficava combinado assim: quando ele tivesse uma obra publicada, o mais tradicional de nossos galardões – o Prêmio Jabuti – tinha destino certo. O resto que chiasse. Até que a coisa ficou explícita demais em 2010.
Naquele ano, segundo colocado na categoria romance, Chico levou para a sua cobertura, no Alto Leblon, no Rio, o grande prêmio da noite – obra e graça de um complicado regulamento, que previa uma confusa segunda etapa, na qual os três primeiros colocados nas principais categorias concorriam ao título do ano de ficção e de não-ficção. E em vez do júri especializado da primeira fase, a escolha dos vencedores cabia aos representantes da Câmara Brasileira do Livro (livreiros, editores, agentes, distribuidores e demais representantes do setor editorial), em geral pouco afeitos ao exercício da crítica literária.
O bafafá irrompeu com a vitória de Leite derramado, nos mesmos moldes que já ocorrera em 2004, com Budapeste (terceiro lugar na categoria romance e em seguida escolhido como livro do ano de ficção). E se a grita de editores vinha de longe mas permanecia nas coxias, em 2010 um peso-pesado do mercado editorial, o editor Sérgio Machado, do Grupo Record, sentiu-se indignado com o que chamou de situação “esdrúxula”. Editor do primeiro colocado na categoria romance daquele ano, o estreante Edney Silvestre e seu E se eu fechar os olhos agora, Machado saiu atirando: para ele, o Prêmio Jabuti seria uma “comédia de erros”, e anunciou que não mais inscreveria os livros da editora a partir dali.
O editor de Chico, Luiz Schwarcz (Companhia das Letras), respondeu em tom severo, muita gente opinou, a crise se instalou e, no fim das contas, a CBL mudou as regras do jogo a partir do ano seguinte. “Antes os escritores eram prestigiados pelos prêmios, agora são os prêmios que precisam dos escritores para ter prestígio”, resumiu na época o editor José Mário Pereira, da Topbooks.
Convém lembrar: aquele foi o terceiro Jabuti de Chico. Ele também já vencera com Benjamim. Em outras palavras, desconsiderando Fazenda modelo, até publicar no fim de 2014 O irmão alemão, o filho de Sérgio Buarque de Hollanda tinha quatro romances e três Jabuti. Um Schumacher das letras.
O ídolo precede o escritor
O episódio vem à memória para sublinhar a dura vida do Chico Buarque escritor. Como afirmou com a sabedoria de sempre o jornalista Paulo Roberto Pires, no blog do Instituto Moreira Salles, é muito fácil gostar de um livro de Chico Buarque; e é muito fácil detestá-lo. A despeito de si mesmo, o ídolo precede o escritor, no que resulta uma conclusão natural: num ambiente de culto à celebridade, do qual Chico não consegue mais escapar, o escritor termina por ser excessivamente superestimado e celebrado.
Assim sugeriu Paulo Roberto Pires: para os fãs, tudo o que vem dele é genial, mesmo que muita gente boa tenha que suar a camisa para enfrentar sua prosa intrincada fingindo que é o refrão de “Vai passar”. Para os detratores, parece continuar valendo a sentença de um crítico, que em 1991 recebeu Estorvo lembrando que “literatura” era coisa de “escritor” e não de “cantor” (!). Ao genial responsável por nossas grandes paixões e dores de cotovelo que pareciam eternas não seria concedido o direito de ingressar no complexo mundo da literatura – e vender mais do que qualquer outro escritor brasileiro vivo, então, isto já seria uma heresia.
Chico Buarque é um bom escritor. Em seus momentos mais maduros, exibiu obras razoáveis. Concebeu romances de estrutura inteligente. Conseguiu momentos incrivelmente divertidos. Produziu trechos notáveis do ponto de vista literário.
O culto excessivo e ostensivo à imagem de Chico Buarque torna-se inevitavelmente o maior algoz do escritor. Ele pode ser um bom escritor, a leitura agrada em alguns momentos, mas quase sempre, mesmo nos melhores momentos, o todo é muito menor do que a soma das partes – razão pela qual ainda lhe falta “a” grande obra literária.
A irregularidade é sua marca. Um momento brilhante, de algum rigor na escrita, sem palavras mal escolhidas ou frases fora de ritmo, é invariavelmente sucedido por um lampejo de fraqueza estilística ou por armadilhas da própria trama que criou.
As armadilhas do irmão alemão
Assim ocorre no seu mais recente livro, O irmão alemão, no qual Chico transforma em literatura a descoberta, ainda jovem, de que seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, tivera um filho na Alemanha em 1930. Embaralha invenção e biografia, realizando o que virou moda chamar-se de “autoficção”.
Dos muitos elogios exagerados que recebeu, prefiro a crítica sensata do professor Alcir Pécora, em artigo publicado na Folha de S.Paulo: “A novela poderia guardar o encanto secreto das narrativas de busca (…) não caísse em armadilhas fatais, que a tornam basicamente insossa”.
Convém destacar aqui duas duas dessas armadilhas.
A primeira: a incapacidade de ajustar o tom picaresco da narração, associado à rivalidade sexual dos irmãos, ao pitoresco italiano da mãe e ao caricato alheamento intelectual do pai, com o tema dos desaparecimentos.
A segunda: a forma de construir o passado com um “realismo postiço” (expressão de Pécora), composto de marcas de carros, nomes de ruas, bares de moda, artistas e restaurantes de uma São Paulo de 1968. Um excesso de detalhamento didático que não passa de uma etiqueta de um burocrático retrô, não uma imagem convincente da cidade da época.
Nas últimas páginas de seu livro, Chico enumera informações sobre a vida de Sergio Gunther, o irmão alemão que sobreviveu à guerra e se tornou cantor e compositor. E faz uma nota sobre como foram as investigações na Alemanha. Troca a literatura pelo relatório puro e simples, o que deixa o leitor menos fã intrigado: não teria colhido melhor resultado se fosse o Chico, e não o personagem-narrador Ciccio – a narrar essa história maravilhosa?
Com mais biografia e menos ficção que lhe trazem armadilhas, repletas de repetições e gracinhas tolas, a narrativa de O irmão alemão sairia tão menor que a história que o inspirou?
A generosidade excessiva da mídia
Embora seja um bom escritor, certamente não seria agraciado com tantas linhas, tanto espaço e tanta generosidade não fosse ele quem é. E nisto não reside uma constatação melancólica, ácida ou desesperada, e sim uma obviedade de quem enxerga o mundo com as devidas variáveis comercial, mercadológica e mesmo psicanalítica.
Chico vende. Chico é amigo da imprensa. Chico é gênio. Chico tem boas relações. Chico é ídolo. A mídia precisa de ídolos.
Com essa soma de atributos e com a magnífica contribuição do marketing preciso e profissional da Companhia das Letras, Chico não precisa dar entrevistas para que jornais e revistas dediquem-lhe generosos espaços. A cada lançamento seu, jornalistas se esforçam pela maior amplitude possível que não se vê em muitas obras – um jornal chega a tratar como regra convidar três ou quatro resenhistas; outro não dispensa a ideia de percorrer os locais em que suas tramas se passam.
Este foi um dos desserviços prestados pela imprensa a O irmão alemão. Foram tantos os textos sobre as árvores genealógicas dos Buarque de Hollanda, sobre as referencias a W. G. Sebald, sobre as motivações da obra, que o livro passou a ser compreendido demais, codificado demais – associações extraliterárias das quais escaparam suas obras anteriores.
Mas não se engane: Chico demonstra uma atitude blasé diante da imprensa, finge não gostar até, mas costumar ficar atentíssimo a tudo o que sai sobre ele, sobretudo na mídia tradicional. Se algo lhe desagrada, aciona seus amigos nas escalas mais altas das redações ou, se for o caso, recorre a um competentíssimo assessor de imprensa, com quem trabalha há muitos anos. Quando deseja dizer algo, escolhe a dedo os jornalistas que lhe servirão de interlocutores, em geral amigos de confiança.
Mais recluso, mais celebridade
Eis o que talvez seja um paradoxo de nosso tempo. Tanto na obra do compositor e cantor de 1987 em diante – quando mergulhou numa musicalidade mais intimista – quanto na obra literária, seus trabalhos se tornaram menos empolgados, menos comunicativos. Nesse tempo, Chico quis ser cada vez menos celebridade, mas nunca parou de crescer como celebridade. (Além do culto em torno de si, não deixa de ser uma atitude de celebridade destes tempos um autor ou um cantor resolver não conceder entrevistas à época de lançar sua obra.)
Foi justamente o período em que Chico Buarque se tornou cada vez mais escritor. A literatura, em especial, pareceu tornar-se o veio mais adequado para essa fase em que se fechou mais para si ou para uma atitude de resistência contra a dureza da realidade, em favor da proteção de um universo paralelo irreal, feito de sonhos e pesadelos. Não à toa, o imaginário literário flutua em sonhos confusos, como mostram os narradores de Estorvo, Benjamin e Budapeste.
Se prevalecer a sina de sua trajetória literária, outros prêmios virão. Ainda que uma grande história tenha chegado ao fim diluída numa prosa quase jornalística, O irmão alemão tem como autor um bom escritor que, por se chamar Chico Buarque, larga com enorme vantagem contra qualquer romancista de sua geração.